Interzona: Como surgiu o projeto e o nome "Voodoohop"? Ele foi concebido e pensado especificamente para SP, essa megalópole caótica e subdesenvolvida? Laurence Trille: Quando encontrei o Thomas pela primeira vez na Augusta, fazia 3 semanas que ele tinha criado a noite “Voodoohop”. Era ele e alguns amigos discotecando na sexta-feira no Bar do Netão. Conversamos, e acho que ele nem sabia muito bem o porquê do nome “Voodoohop”, só soava bem e ponto. Para mim a referência ao vodu do Haiti e a macumba está se revelando com o tempo e faz cada vez mais sentido. Musicalmente Thomash e os Djs residentes – como, por exemplo, o Piero Chiaretti ou a Marina Sarno – estão pesquisando a junção de ritmos africanos com novas sonoridades, buscando o estado de transe, utilizando elementos de macumba e vodu. Visualmente a associação com artistas como Keroøàcidu Suäväk foi muito importante, no trabalho dele tem varias referencias às religiões animistas e primitivas, um misticismo que podemos aproximar do vodu. Thomas Haferlach: O Projeto Voodoohop na verdade não foi planejado. Ele se desenvolveu a partir do desejo de tocar músicas ecléticas no Bar do Netão. O que aconteceu depois disso não estava previsto, não tínhamos um objetivo específico, demos um passo após o outro, fazendo o que a gente achava divertido e o que a gente sentiu que seria a próxima etapa mais lógica. O nome surgiu porque a noite/balada é um ritual para se liberar dos pesos ou espíritos ruins da semana. É um ritual coletivo, uma forma moderna de rituais como o vodu. Não levamos isso muito sério no sentido de uma religião. É uma relação mais abstrata. Interzona: Epícuros dizia que o prazer seria o fim supremo da vida. Na sua obra “Do Fim Supremo”, ele dizia: “Não sei conceber o bem se excetuo os prazeres do palato, os prazeres do sexo e os prazeres derivados da audição ou da contemplação da beleza”. No site da Voodoohop, vocês dizem que o evento tem um clima hedonista. O prazer é o objetivo? Laurence Trille: A idéia é não ter vergonha dos prazeres, se sentir livre. Nossos espaços são sempre pensados para que as pessoas se sintam à vontade e se libertem, a questão é romper com os tabus. E no final é dentro dessa energia de libertação e de criação que todo mundo sente prazer. É preciso não se levar muito a sério, voltar a ser criança. De alguma forma, as crianças são hedonistas, elas são sinceras e criativas e não sentem ainda o peso das regras da sociedade. Para a gente hedonismo não rima com egoísmo, mas com compartilhamento, implica um momento de união, como os rituais tribais de várias civilizações antigas que tinham como objetivo unir as pessoas; é um momento de conexão, um prazer de comunhão. Adoramos organizar eventos na rua, queremos fazer mais. Thomas Haferlach: Eu cresci em um ambiente em que o pensamento científico tinha muita força, então para mim a vida não tem uma moral ou sentido. Somos o resultado de várias reações químicas aleatórias. Ao invés de tentar buscar grandes objetivos para a vida, a gente deveria aceitar que ela não tem sentido e fazer a única coisa lógica, que é se divertir o máximo possível sem tolher a liberdade e o prazer das outras pessoas. A gente está tentando criar um espaço para isso. Mas prazeres não precisam ser imediatos. Por isso gostamos de nos envolver com projetos culturais para tentar junto com a nossa comunidade aprender novas formas e fontes de prazer.
Interzona: No site, novamente, vocês dizem que se trata de um evento artístico atípico, há performances, projeções, exposições fotográficas... Andy Warhol fez algo nessa linha ao criar a Factory, onde havia festas, apresentação de bandas (como o Velvet Underground) e exposições. Como é a fruição de arte em um evento hedonista? Os museus não são lugares adequados para a arte contemporânea? Laurence Trille: Como acabei de dizer, a idéia de hedonismo deve ser entendida como a de “liberdade”, e vejo uma ligação direta entre arte e liberdade. Museus são lugares de exposição, mas não de criação. Uma festa não é um lugar perfeito para exposições, mas torna a obra uma experiência que o público pode viver, incorporar e reagir. E o artista pode interagir com o público. Gosto também da idéia de festa como obra, com um lado visual, musical e experimental que coloca o público num “estado”, numa vivência especial. Criar um caos artístico para ser sentido em vez de pensado. Thomas Haferlach: Como muitas pessoas em São Paulo passam 50% da vida no trabalho, 25% na balada e 25% dormindo, tentamos maximizar a balada, temos ao mesmo tempo arte, cultura e diversão. Assim o paulista não precisa voltar para casa com má consciência depois de uma noite excessiva. Mas, falando serio, eu acho que os museus me deixaram traumatizado; quando era criança meus pais me forçavam a ir a várias exposições chatas, e eu sempre fui hiperativo, ficava entediado. Prefiro uma experiência mais imediata, sensorial, e isso um ambiente de festa pode oferecer. Interzona: Ambientes festivos e libertinos frequentados principalmente por jovens e artistas são geralmente atacados pela opinião pública e condenados pelas leis. Parece sempre haver um esforço para domesticar algo que não pode ser domesticado. Em 2007, a prefeitura de SP, comandada por Gilberto Kassab, foi destaque na mídia por fechar um famoso bordel. As leis do silêncio e antifumo afetaram bastante os bares, os restaurantes e principalmente os eventos festivos. O Voodoohop foi multado em uma ocasião e alvo de reportagens de TV e jornais. Hoje se vê que o efeito disso não foi tão danoso, parece que bares, restaurantes e eventos se reorganizaram, as coisas seguem seu curso. Mas o que vocês pensam dessas leis? Sinal de que nós brasileiros estamos nos tornando civilizados como os europeus? Ou trata-se talvez de um espírito ordeiro excessivo, de algo abusivo, de uma tentativa de padronizar os modos de vida? Laurence Trille: Acho que há uma tendência mundial, todas essas novas leis de controle e higienização são apresentadas como algo que melhoraria o dia-dia do cidadão. Como se um mundo mais civilizado e melhor tivesse que ser necessariamente cheio de leis e interdições! Para mim trata-se simplesmente de uma redução desnecessária das nossas liberdades. Acho bem interessante o caso especial de Berlim, uma capital ocidental “civilizada” onde a liberdade individual continua muito grande. É possível beber na rua, fumar dentro dos bares, abrir um bar ou um clube em qualquer esquina; não tem cerca, placa de interdição em todos os lugares... Mas as pessoas tem uma noção de respeito muito grande, elas valorizam essas liberdades e não abusam. Tocamos no festival Fusion, um festival de 60000 pessoas, e não tinha quase nenhum segurança. Claro que não é uma coisa possível de mudar em um dia, mas acho mais inteligente investir na educação das pessoas em vez de gastar em medidas de restrição e interdição. Irritam-me muitas dessas leis superficiais que apenas parecem modernas e, na verdade, não possuem qualquer consistência.
Interzona: Recentemente um DJ estrangeiro veio a São Paulo e disse que gostava de trabalhar aqui porque o Brasil é uma terra sem lei, caótica. Apesar de tudo que dissemos na questão anterior, apesar de vocês terem enfrentado essa legislação nova e mais dura, vocês acham que aqui as leis são mais frouxas, que ainda há uma margem boa de tolerância com a loucura? Em outros países seria possível realizar o Voodoohop nas condições em que ele é realizado hoje? Laurence Trille: Apesar das novas leis e dessa tendência para a “higienização”, São Paulo e o Brasil em geral tem uma tradição de tolerância muito grande com a cultura de festa e da loucura (será que tem a ver com a cultura do Carnaval?). Várias vezes a gente teve que tratar com uns velhinhos ou pessoas bem caretas para alugar espaços. Sempre ficamos com receio de reações conservadoras ou negativas da parte deles em relação a nossa festa, mas eles sempre adoram! É bem mais difícil encontrar esse tipo de reação positiva na Europa! Thomas Haferlach: Concordo com a Laurence, mas queria acrescentar que no Brasil essas leis não estão sendo aplicadas tão rigorosamente. Se você não encher o saco de ninguém, não chamar atenção demais, e se nenhum repórter babaca escrever uma matéria sobre você, há certa liberdade. São Paulo tem tantos problemas... A polícia e a prefeitura têm coisas mais importantes para fazer, não vão ficar interditando um evento promovido por um bando de pseudohedonistas.
Laurence Trille: Para mim, o sucesso da Voodoohop é indissociável dessa capacidade que o Thomas teve de entender e utilizar as novas tecnologias e redes sociais. Antes de vir pro Brasil, organizava uma festa em Paris bem parecida com a Voodoohop, mas sempre encontrei dificuldades em divulgá-la. As pessoas ficam perdidas com o excesso de informação, tem que achar um jeito de chamar a atenção, com originalidade, e o Thomas fez isso. Thomas Haferlach: Acredito que parte desse crescimento rápido definitivamente tem a ver com o nosso uso experimental das redes sociais. Usamos vários pequenos aplicativos que fizeram as festas bombar. Uma vez desenvolvemos um quiz online sobre os transtornos de personalidade das pessoas. Elas compartilhavam o resultado desse teste, e aí a festa era para curar esses transtornos, com uma sala para medicação, consultórios médicos etc. Agora tenho um perfil psicológico do nosso público! Claro que não, o teste foi uma brincadeira). Em outro aplicativo, por exemplo, no flyer, as pessoas podiam colocar a imagem dos seus rostos em cima do corpo de uma ovelha. Estou pensando agora em um aplicativo para que as pessoas possam achar o lugar da festa usando smartphone e GPS, alguma coisa que te force a passar por vários lugares da cidade, mas ainda não é nada definitivo. Interzona: Timothy Leary foi um dos precursores da experimentação programada de drogas. Para ele a ambientação (luzes, decoração, odores, projeções, música etc.) era essencial para se ter uma boa "viagem". A escolha do espaço e a preparação do ambiente são determinantes no projeto Voodoohop? Seria esse um dos seus maiores diferenciais? Laurence Trille: Desde sempre adoro viagens, adoro o fato de estar num novo lugar (com novos cheiros, cores, sons, outra língua, outro visual...), real ou irreal. Quando era criança criava espaços para viajar: cabanas de madeira e palha na natureza, onde me sentia em outra civilização, foguetes de papelão com várias salas, barraca das estranhezas, onde entrava com olhos fechados e tocava vários objetos de consistências surpreendentes. Adorava essas experiências e esses espaços onde você se sente num outro mundo. Thomas Haferlach: Não sei se é bem um diferencial, porque cada casa noturna, de certa forma, cria uma ambientação para dirigir a viagem das pessoas. É uma questão de estética – a gente gosta das coisas espontâneas, às vezes malfeitas, que surpreendem e mudam cada vez que se olha para elas. O que mais tento evitar é ter todos os ambientes com som alto ou com uma multidão de pessoas. Para mim sempre tem que haver um lugar para poder respirar, relaxar e conversar. Também gosto de evitar logomarcas nos ambientes, porque para mim quebra o clima. O Brasil parece adorar logos, os espaços são preenchidos com o maior número possível de logomarcas. Interzona: Moralismo e sedentarismo parecem ir bem juntos. É por isso que o evento é itinerante? Para fugir da moral e dos bons costumes? Qual a inspiração para esse nomadismo? Falem sobre a Trackers, esse prédio um tanto decadente à maneira dos dândis, o epicentro do Voodoohop. Laurence Trille: Moralismo... Talvez seja um pouco exagerado unir essas duas coisas; para mim sedentarismo é sinônimo de rotina e repetição. Gostamos de surpreender as pessoas com novos espaços, especialmente espaços localizados em áreas da cidade por onde elas nunca se aventuraram. Além de surpreender e criar algo novo, queremos também conhecer mais a cidade e criar uma agitação em áreas abandonadas. Adorei montar nosso palco da virada cultural na Luz e gostaria de fazer mais coisas nesse bairro. Thomas Haferlach: Eu gosto de descobrir coisas novas, por isso ficar parado no mesmo lugar me entedia. Parece também que quanto mais escolhemos lugares fora do roteiro normal, melhor fica o clima da festa, e o público que segue a gente nessas viagens é também mais interessante do o que vai sempre para os mesmos lugares. A Trackers – aka Associação Brasileira de Empresários de Diversões – vai trazer ainda muitas surpresas. Novos espaços secretos, jardins escondidos, salas de rituais audiovisuais e muito mais
Interzona: Há alguma ressonância entre o projeto de revitalização do centro da cidade de São Paulo pela prefeitura e a proposta de ocupação artística da Voodoohop? Essa revitalização não pode acabar justamente com o que há de singular no local? “Recuperar áreas degradadas, melhorar a qualidade ambiental, alavancar a economia da região, promover a inclusão social e o repovoamento do Centro”... São propostas louváveis, mas que escondem um forte ensejo econômico: especulação imobiliária, desapropriação de moradores carentes, excesso de leis coercivas, fechamento de estabelecimentos libertinos (como cinemas pornográficos e bordeis). O centro vai se aburguesar? Nova York, por exemplo. No filme “After Hours” de Martin Scorsese se vê um bairro cheio de artistas e pirados de todo tipo, uma imagem do que foi esse bairro outrora. Hoje é um dos metros quadrados mais caros de NY. A revitalização artística seria a melhor alternativa? Laurence Trille: Na Europa, a palavra “gentrificação” está na moda, as pessoas sempre falam disso como de uma praga, para mim é simplesmente um processo natural. Foi, por exemplo, o que aconteceu na Praça Roosevelt, onde ninguém queria morar 10 anos atrás (antes dos Satyros criar o primeiro teatro); hoje você vê o preço do aluguel triplicar e os jovens alternativos e os mais pobres se mudar para outras áreas mais baratas. O caso do projeto Nova Luz é bem diferente porque não rolou esse processo “natural”. A prefeitura e as imobiliárias anteciparam essa mudança e já compraram, desapropriaram e estão construindo brutalmente num bairro onde a população não estava preparada. Eles querem fazer em 2 anos o que normalmente demora 15! Thomas Haferlach: Eu acho o centro o lugar mais decadente e bonito de São Paulo. Fiquei com uma grande pena quando o vi sem cultura e bastante abandonado à noite. Eu fico muito feliz de estarmos fazendo a diferença, contribuindo para a sua ocupação. Sinto que a área está mudando cada vez mais rápido. Quero mais cafés e bares sem essa luz branca fluorescente, sem essa maldita comanda e com sofás de segunda mão.
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