Kah Dantas na Interzona
Interzona. Quando alguém vir o seu nome estampado em uma capa de livro ou ouvir falar da escritora Kah Dantas, o que você gostaria que essa pessoa soubesse ou pensasse? Kah Dantas. Eu tenho aquele sonho de que, um dia, quem sabe, o meu nome seja reconhecido como sinônimo de uma leitura que vale a pena, de uma boa escrita. Que eu não seja apenas aquela cearense que passou por um relacionamento abusivo e publicou a sua história sobre ele, mas uma mulher de múltiplas escritas e histórias para contar. I. Uma pesquisa realizada pela Universidade de Brasília – UNB – em 2018, confirmou algo que muitos já suspeitavam: grande parcela dos romances publicados no Brasil foram assinados por homens brancos, héteros e de classe média, nascidos no eixo Rio-São Paulo. Como você se situa dentro dessa homogeneidade excludente? KD. Veja que, mesmo inserida nesse cenário, compreendo que estou em posição infinitamente melhor e de mais facilidades do que as mulheres que escreveram e publicaram (ou tentaram) antes de mim. Sei que, enquanto mulher e nordestina, enfrentarei obstáculos mais alargados nesse contexto de produção literária, mas estes, como tantos outros, são tempos de luta, de ter em mim que desistir não é uma opção. Continuarei escrevendo e publicando. Acho que estou no caminho certo. I. “Boca de Cachorro Louco”, o seu primeiro livro, trata de um tema bastante atual e espinhoso: os relacionamentos abusivos. Atualmente você desenvolve um blog chamado “Orgasmo santo”, onde você trata também de relacionamentos, porém sob outro ponto de vista, mais poético e libertário, talvez... Como você relaciona estes dois projetos?
KD. Eles têm uma relação mais estreita do que aparentam, porque ambos nasceram de uma necessidade muito física e urgente de falar, a mim mesma e ao mundo que queira ouvir, sobre as dores e amores pelos quais vivo todos os dias. O Boca de Cachorro Louco foi um meio de sobrevivência, literalmente, diante da violência que experimentei. O Orgasmo Santo, apesar de abrigar outros anseios, vividos e imaginados no meu corpo, também tem esse quê de manutenção da vida. É que vivo também porque escrevo.
I. Hilda Hilst foi muito criticada por “abandonar” uma carreira bem consolidada de escritora “clássica” para publicar livros de “gosto duvidoso”. Você acha que os livros eróticos, que tratam o sexo de forma mais ou menos explícita, merecem ainda ser vendidos por debaixo do balcão? KD. Absolutamente que não! Apesar de que, depois dessas últimas eleições, em que conseguimos, de maneira impressionante, eleger esse imbecil que nos desgoverna, ainda há muita gente besta por aí fazendo mau uso da existência com suas posturas conservadoras. Escrever e ler sobre o corpo e o sexo não tornam essas atividades, de maneira nenhuma, menores em termos estéticos e literários. Viva o corpo! Viva o sexo! Viva o orgasmo! I. Henry Miller diz que fez o inverso de Rimbaud, enquanto este abandonou a literatura pela vida, aquele abandonou a vida pela literatura. Já Jack Kerouac conseguiu intercalar momentos atribulados na estrada com momentos sossegados no seio familiar, nos quais lia, pesquisava e finalizava seus livros. Como você vê essa relação entre a aventura (viagens, casos amorosos etc.) e a escrita? KD. Não acho que existam fronteiras para separar tudo isso. A escrita nasce muitas vezes da matéria viva, do olhar na estrada, do sexo ardente num quarto de hotel depois de um cigarro de maconha, da memória de um livro lancinante em algum momento de dor no peito, enfim, a escrita é viva e nos acompanha do acordar ao adormecer. Escrever também é a aventura.
I. Pra finalizar. Quais seus próximos passos na seara da literatura? KD. Por ordem feliz de chegada ao mundo, assim espero, este ano ainda desejo lançar um livro de contos eróticos, com textos já publicados no Orgasmo Santo e outros inéditos, todos reinterpretados através das ilustrações do artista plástico Bruno Marafigo, um grande amigo de Curitiba. Trata-se de uma obra híbrida, desenvolvida em coautoria e que será dada à luz através dos cuidados da editora Gosto Duvidoso. Inclusive, tô muito ansiosa para começar a trabalhar na divulgação e execução desse projeto! Além disso, quero voltar ao curso de escrita criativa e retomar uma rotina mais animada de leitura e escrita. Então, pretendo finalizar meu primeiro romance de ficção, o Inhamuns, com o qual tenho alguns sonhos. Há também outros projetos, mas ainda muito distantes, então não faz sentido falar sobre eles. São Paulo, novembro de 2019
Ridendo Castigat MoresEla empinou pra lá a bunda, pedindo a ele que esfregasse mais para baixo, um pouco mais distante das costas, porque ali a massagem era boa, muito boa, só não melhor do que nas virilhas e nos pés, mas ganhando inclusive das mãos. E assim os dedos iam satisfeitos, úmidos de Paixão, como acontecia toda terça e domingo, que eram os dias em que a mãe dele ia à igreja e o deixava com a vizinha, “Ai, minha filha, são os dias favoritos dele na semana”, a velha repetia toda vez que o entregava na porta ao lado, agradecendo pela disponibilidade e prometendo fazer uns doces, assar uns bolos, apresentar o nome da mulher em oração. O menino tinha já mais de vinte e poucos anos e permanecia menino por causa da cabeça, explicava a mãe, que não crescia nunca em maturidade; era um inocente no meio de lobos devoradores, com uns olhões gentis e, no começo, muito desconfiados também. Detestava o padre e a lenga-lenga das rezas e, à menor vista do homem santo, gritava feito um condenado em pleno suplício, de modo que a mãe, senhora muito devota, fazia três meses começou a deixá-lo com a vizinha, uma mulher divorciada que recentemente tinha perdido seu cachorro para a doença do carrapato. Um dia, a mulher entortou o pulso por conta de ter segurado de mau jeito uma panela cheia de água, e foi quando descobriu os talentos do menino, antes abandonado à televisão, para fazer massagem. Tudo espontâneo: ele correu até a cozinha, pegou o bracinho dela e começou a massagear. Ai, santíssima descoberta, que eram Deus no céu e as mãos daquele menino na terra! A coisa progrediu rapidamente. Dali em diante, tudo era razão para massagens, e as peças de roupa foram sendo eliminadas semana após semana, até que a mulher resolveu comprar uma cama para massagem profissional e solicitar, com óleos e hidratantes, que o menino ajudasse a “sarar os machucados” por todo o corpo. Não havia machucados e ele bem sabia disso, mas pouco importava. É que massagear exigia uma técnica muitíssimo elaborada, um desafio estupendo!, era preciso agarrar o músculo do modo certo, cirúrgico, como mostrava o Dr. Sazaki Yakasuma Ionishi nos seus vídeos. Houve uma terça, no entanto, em que os fiéis foram dispensados da igreja por falta de energia e, voltando para casa muito mais cedo, naquele dia, a mãe do menino o encontrou com as mãos cheias de óleo, os olhos brilhando e a língua meio para fora do lado direito da boca, enquanto ele massageava, muito concentrado, a vizinha nua!, nua em pelo!, feito uma jezabel dissimulada e gemedeira. Teve exorcismo emocionado, jarros voadores se espatifando no chão e vizinhos curiosos, que só não chamaram a polícia porque entenderam logo que não era o caso. O menino pedia, todo elegantemente, tal qual um cidadão ético interrompido no momento do exercício profissional, que a mãe se acalmasse e fosse para casa, “estou trabalhando”, ele dizia, mas não podia ser, “não criei filho para gigolô”, ela replicava, “sua aproveitadora, não vê que é uma criança inocente?!”, emendava, acusando a mulher de ser concubina de Satanás, enviada para desvirtuar o querido menino que, por vontade de Deus, tinha nascido e se criado, em virtude do espectro, para sempre inocente dessas coisas. Um engano! No fim das contas e com a bênção de uma psicóloga, após um processo que não cabe a nós revelar, foi embora de casa, o menino, depois de se unir à vizinha em planos suculentos e de arranjar um emprego como massagista profissional em uma clínica de beleza, a serviço do Inimigo, como dizia sua mãe, que era capaz de fazer lúcido um homem por meio do estremecimento de suas partes baixas. Pobre ignorante. Era também chorando que se castigavam os costumes.
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