Entrevista com Gunnar

 

 

 

Interzona: O desenvolvimento tecnológico possibilitou a proliferação de estúdios caseiros. Hoje é possível, com um investimento de pequeno porte, trabalhar com equipamentos e recursos inimagináveis na década 1960 (quando mesas de quatro canais eram dispositivos extremamente raros e sofisticados). Você lida em seu estúdio, porém, com aparelhos analógicos, com sistemas de gravação antigos. Você tem alguma resistência às novas tecnologias, ao digital?

Gunnar: Sim e não. Amo o fato de que qualquer um pode montar um estúdio em casa, mas isso tem um custo; não financeiro, mas sonoro. O som que obtenho da fita é muito mais rico e dinâmico que o gravado no computador. A razão disso é que há uma diferença fundamental na forma como o som é gravado no computador. O som de entrada é convertido por meio de programas em zeros e uns, há, portanto, uma limitação quanto a quantidade de informação que pode ser armazenada. Mesmo se não houvesse uma limitação (taxa de bits), seria ainda uma interpretação computadorizada de som. A fita registra todo o espectro dinâmico, sem limitações ou interpretações, e você consegue ouvir a diferença. Além disso, a gravação em um computador possibilita uma quantidade quase ilimitada de opções, instrumentos, configurações, faixas e plugins para adicionar etc., que, a princípio, parecem ampliar as possibilidades, porque quanto mais, melhor, certo? Para mim, não. Acho que tenho muito mais liberdade de expressão quando me limito a oito faixas, alguns efeitos externos e instrumentos reais; simplesmente aprecio mais o processo assim. Saber que são apenas oito faixas o fará planejar a gravação de maneira diferente, e é mais provável que você realmente termine o que começou. Só paro uma gravação quando a música está pronta. A maioria das pessoas que conheço e que gravam digitalmente tem dificuldade em terminar suas canções, por causa das faixas intermináveis e das opções disponíveis. Porém, uso também alguns equipamentos digitais/modernos quando convém a minha forma de gravação. Meu órgão Hammond XK-1 é também o controlador midi para meu módulo de som Korg Micro-X, que uso para substituir alguns dos instrumentos que não tenho (mas gostaria de tê-los!). Uso também meu iPad e iPod para elaborar batidas (não tenho bateria), e dá também para brincar com alguns aplicativos de sintetizadores.

Interzona: Você viveu em Londres, onde estudou e trabalhou com música. Recentemente fez visitas ao Brasil. Como você vê a cena musical do Rio e de São Paulo, onde esteve, comparada à de Londres e Amsterdã (onde vive atualmente).

Gunnar: Não tenho certeza se posso responder a essa pergunta, porque faz tempo que não tenho sido ativo nessas cenas. Gravo em casa e em outros estúdios caseiros com amigos, parei de tocar ao vivo há muito tempo. Na década de 90, em Londres, a cena musical era incrível. Havia músicos do mundo inteiro e jam sessions em toda a cidade. Mas, financeiramente, era terrível. Havia tanta concorrência que os estabelecimentos não pagavam, às vezes faziam os músicos pagar para tocar! Foi em Londres que fiz dois cursos noturnos na universidade, um sobre a indústria da música e outro sobre as leis nesse ramo, o que me fez decidir ficar longe do lado comercial da música. Foi terrível descobrir como os músicos são explorados impiedosamente e como a indústria é cínica. Quando cheguei a Amsterdã, a situação era realmente melhor para os músicos, porque pelo menos te pagavam alguma coisa quando você fazia um show. Tenho amigos aqui que conseguem ganhar a vida somente com música. Em Londres, conheci alguns músicos profissionais, mas eles estavam em um nível profissional mais elevado. Pessoas como eu (ou meus amigos aqui em Amsterdã) não teriam a menor chance de ganhar a vida com música em Londres, a concorrência lá é grande. O que posso dizer sobre o Brasil? Honestamente, não muito. Não conheci tantos músicos, foram principalmente pessoas envolvidas com a indústria de cinema e tv. Achei São Paulo mais parecida com Londres e o Rio mais parecido com Amsterdã, no que diz respeito a oportunidades e níveis de profissionalismo, mas não tenho certeza se isso é verdade. Acho que tenho de voltar e descobrir!

Interzona: Você é um músico bastante prolífico. Recentemente divulgou uma compilação em comemoração das 500 faixas gravadas em seu estúdio. Como é seu modo de trabalho? Você é do tipo inspirado, que produz facilmente, ou metódico e dedicado, que trabalha regularmente, como um bom profissional?

Gunnar: Ha! Bem, me inspiro quando toco alguma coisa. Às vezes é um som que estou buscando e, durante essa busca, me deparo com algo de que gosto e decido gravá-lo. Como disse antes, quando começo, vou até o fim, o que normalmente leva de uma a duas horas. Muitas vezes, consigo uma melodia simples, mas que musicalmente não vai a lugar algum. De qualquer forma, para mim, é divertido simplesmente tocar os instrumentos e obter esse som que estou buscando. Outras vezes, me sinto mais inspirado, e toda uma melodia se desenvolve quando estou gravando. Às vezes, a vejo como um diário; o que está em minha mente sai como música nesse dia particular. Gosto de descrever minha música como trilha sonora, porque ela é livre no que diz respeito à (falta de) estrutura, ao contrário das canções tradicionais, que têm início, meio e fim, embora às vezes use essa estrutura. Acho que minha música pode ser melhor apreciada como música de fundo para filmes. É por isso que decidi compartilhar meu disco, para que, com sorte, alguém possa apreciá-lo enquanto faz outra coisa ou, o que seria ainda melhor, usá-lo em um projeto audiovisual, como você fez! Adorei a combinação entre minha música e suas imagens. Não me vejo como um artista com potencial comercial, cujas músicas serão tocadas nas estações de rádio, acho que meu trabalho, em combinação com cinema/vídeo, é voltado para outras pessoas. Ter mais de 500 músicas parece muito, mas, honestamente, a maioria delas não são para escutar, não servem nem mesmo como trilha sonora. São apenas ideias musicais ou experimentações. As músicas que escolhi para meu segundo disco têm estrutura suficiente, as pessoas podem, portanto, escutá-lo. Acho que tenho ainda um material considerável para uns dois discos, mas, para mim, as coisas mais recentes são sempre mais interessantes, pois estou ficando cada vez melhor na parte da produção e, ao mesmo tempo, meu estilo está se definindo mais à medida que evoluo musicalmente. Ainda não estou convencido de que toco bem algum instrumento ou de que sou um bom produtor, mas tenho orgulho das músicas que selecionei para este disco. Pelo menos uma coisa se pode dizer da minha música: são muitas!

Interzona: Você é um leitor contumaz de biografias sobre músicos, especialmente de ícones da música negra como Fela Kuti e George Clinton. Essas leituras influenciam seu trabalho? É como se cercar de amuletos, de boas emanações?

Gunnar: A música deles realmente me inspira. Fela Kuti, Mulatu Astatke, Sly Stone, Dennis Brown, Gil Scott Heron e François de Roubaix, para citar alguns. Mas a personalidade ou a vida pessoal desses músicos nada têm a ver com minha apreciação de sua música. Muitos deles não são, na verdade, pessoas legais! Gosto de ler essas autobiografias porque essas pessoas levaram vidas loucas e fizeram coisas imperdoáveis. Meus loucos favoritos são: Rick James, Tim Maia, Richard Pryor, Miles Davis, Honeyboy Edwards, Dr. John e os Neville Brothers, Barry White. Os que me impressionaram: James Brown (de verdade!), Gil Scott Heron, Ray Charles, Fela Kuti, Paul Mooney, Quincy Jones e Fred Wesley. Os que me decepcionaram bastante: Nina Simone, Aretha Franklin, Anthony Kiedis, Keith Richards, Questlove. Li muitas outras autobiografias, mas essas foram as que mais me tocaram.

 

 

Nascido em Amsterdã, Gunnar começou a tocar aos 15 anos. Ainda adolescente, integrou uma banda de ska e gravou um álbum duplo ao vivo, em vinil; posteriormente, um álbum de estúdio, em CD. Mudou-se para Londres aos 24 anos para se dedicar exclusivamente à música, onde realizou cursos de direitos e empreendimentos musicais e engenharia de som. Foi então que decidiu não viver como um músico profissional e passou a gravar suas próprias composições. De volta à Amsterdã, construiu um estúdio em casa, onde toca e grava toda sexta-feira com seus amigos. Em seu estúdio já gravou mais de 500 músicas e lançou 2 álbuns. Atualmente, planeja montar um selo próprio para lançar os seus trabalhos e os de amigos.

Mais trabalhos de Gunnar:

http://www.allhomerecordings.com/

 

 

Vídeo de Ricardo H. Rodrigues com a música Yatzema, composta por Gunnar.