Jack Kerouac e Neal Cassady

O Jack Kerouac e Neal Cassady
- a aliança criativa -

 

 

Enquanto Cassady escreve, sob a influência de Kerouac,

apenas um livro de memórias tradicional e insípido,

que infelizmente ou não, sequer

chegou a ser concluído, Kerouac pega a estrada dos loucos e compila a bíblia da contracultura.

 

 

       

 

Antes do encontro com Neal Cassady, Kerouac era um mero aspirante a escritor, meio careta, em busca de sua saga (1). Cassady desencadeou no autor de On the road o seu grão de loucura. Como narra o próprio Kerouac, por meio do seu alter ego Sal Paradise: “Com a vinda de Dean Moriarty começa a parte de minha vida que se pode chamar de vida na estrada” (2).


Kerouac e Cassady estabeleceram uma relação intensa, fraterna, logo após se conhecerem. Antes mesmo do primeiro encontro - o cômico encontro no qual Cassady o recebeu, em casa, sem roupas e sem pudor -, eles trocaram cartas amistosas nas quais Cassady descreve sua vida e pede a Kerouac que lhe ensine a arte da escrita. Foi por meio das narrativas de Cassady que Kerouac vislumbrou o estilo literário único, extremamente contemporâneo e oportuno que representou aqueles anos loucos. Enquanto Cassady escreve, sob a influência de Kerouac, apenas um livro de memórias tradicional e insípido, que infelizmente ou não, sequer chegou a ser concluído, Kerouac pega a estrada dos loucos e compila a bíblia da contracultura. Neal, em contrapartida, se torna um herói conhecido e celebrado em todo o mundo, um personagem emblemático e dos mais carismáticos da literatura.


Apesar da relação fraterna e de troca afetiva (Kerouac havia perdido o irmão mais velho; Neal Cassady, o pai) foram muitas as decepções que um causaria ao outro. Cassady acusa Kerouac, por exemplo, de descrevê-lo como um tolo inconsequente em seus livros, e Kerouac, posteriormente, basicamente pelos mesmos motivos, amaldiçoa On the road: livro que influenciou, formou e atraiu uma centena de jovens inconsequentes – fãs de Dean Moriaty - à porta da casa de sua mãe - a memère­, com quem Kerouac viveu a maior parte da vida. Seja como for, as vidas de Kerouac e Cassady se entrelaçaram e formaram umas das maiores alianças entre dois artistas/grandes viventes que se tem história.


A amizade é um forte propulsor da criação desde tempos primevos. Na Grécia Antiga, no século V a.C., temos o caso de Sócrates e Platão. Relação que tem muitos pontos em comum com a de Kerouac e Cassady – com todas as ressalvas, sim, mas sem ironia alguma. Vejamos: Sócrates foi um filósofo errante, com um estilo marcante e inaugural; Platão, um jovem aristocrata, de corpo atlético, amante do esporte e aspirante a poeta; quando se conheceram, ambos nutriram, um pelo outro, um sentimento fraternal, ou melhor, um sentimento paternal, por parte de Sócrates, e filial, por parte de Platão. Sócrates nada escreveu, mas forneceu a Platão o estilo literário e filosófico conhecido como dialética ou diálogo; estilo que Platão exerceu e aprimorou com maestria, tornando-se um dos autores mais influentes da história. Com os Sofistas, Platão protagonizou uma briga de amantes ou pretendentes: ambos queriam desposar a sabedoria. Se Platão, no decorrer da história, sagrou-se vencedor foi devido a sua amizade com Sócrates.


Se considerarmos isso e tivermos em vista que a própria filosofia é definida como o amor ou a amizade à sabedoria, teremos aí uma das gêneses da criação artística, do estilo e de obras fundamentais: a amizade. Amizade, porém, inserida numa relação agonística, que faz da rivalidade um ingrediente de superação e implosão criativa.


Gilles Deleuze e Felix Guattari, que também estabeleceram uma aliança de amizade e criação, nos diz em O que é a filosofia?:

 

Sabemos, todavia, que o amigo ou o amante como pretendente não existe sem rivais. Se a filosofia tem uma origem grega, como é certo dizê-lo, é porque a cidade, ao contrário dos impérios ou dos Estados, inventa o agôn como regra de uma sociedade de “amigos”, a comunidade dos homens livres enquanto rivais (cidadãos). (DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix p.17)

 

Não ter amigos é assumir uma posição parcial, narcisista em relação à sabedoria; seria como um poeta que, em vez de cortejar as musas, corteja a si próprio. O grão de loucura necessário à criação é desencadeado pelo outro, na relação intensa que se estabelece com um corpus diferente. A musa inspiradora ou o amante é o ingrediente que incendeia a criação.


Com Kerouac e Cassady não foi diferente. Os livros de Kerouac anteriores ao encontro com Neal não possuem a pujança do estilo de On the Road, nem a influência e o apelo deste sobre os escritores, artistas e leitores em geral. Antes de conhecer Cassady e depois de romper com este, Jack foi um homem familiar, conservador, em busca de suas origens. Com Neal, o jovem aspirante a escritor saído da pacata Lowell, mas se parece com um pirata sem raça, gênero e passado, singrando de ponta a ponta as routes e paragens dos EUA e do México, em busca do ouro escondido da literatura anglo-americana.


John Clellon Holmes, assim como os sofistas em relação a Platão, rivalizou com Kerouac o protagonismo da escrita beat ao lançar cinco anos antes de On the road, a novela Go, na qual já narrava as peripécias de tipos fundamentais para a geração beat como Allen Ginsberg, William S. Burroughs e Neal Cassady. Kerouac, no entanto, tinha também o seu Sócrates, o seu personagem essencial, e dele extraiu a seiva e a senha para eternidade. O resto é história. O estilo carismático, enérgico e delinquente de Neal nas mãos de Kerouac se tornou literatura. Embora o próprio Neal tenha escrito uma obra inacabada, só com Kerouac o seu estilo é levado às raias da genialidade.
Há rivalidade também entre amigos, sem dúvida, mas uma rivalidade na qual ambos desejam, lá no fundo, como nos diz Nietzsche, que o seu rival seja como uma estrela, para que o possa guiar. Que mestre não teria orgulho de ver o seu discípulo superá-lo? Embora o medo e o ressentimento se sobreponham às vezes, o sentimento predominante é o de orgulho. O pai se engrandece, se legitima e se eterniza quando o filho crescer e conquista o mundo.


A amizade de Jack e Cassady foi cheias de rivalidades e rancores, sim, tanto que quando Kerouac soube da morte de seu parceiro de estrada, em um daqueles trilhos de ferrovia gelados e tantas vezes trilhados, sua reação foi de indiferença. Afinal, se Cassady havia se decepcionado com a maneira com que o seu amigo o descrevera e com a fama de delinquente advinda daí, Kerouac também sofreu com o sucesso estrondoso e inesperado de On the road. Para quem almejava ser o maior escritor da língua inglesa depois de Shakespeare, ser comparado com um caminhoneiro e influenciar uma geração “inculta” que produziu a contracultura, foi um grande dissabor. Diz a lenda que muitos jovens batiam à porta de Kerouac para conhecê-lo, Kerouac os recebiam, mas, entre um e outro gole sôfrego de alguma bebida e papos alucinados, seus admiradores, em troca do afeto dispensado pelo ídolo, pilhavam livros e outros objetos de sua estante. O efeito do sucesso pode ser devastador sobre um homem sensível cuja ambição é o infinito. Como nos diz Schopenhauer sobre a fama: “a cabeça dos outros é um péssimo lugar para ser a sede da verdadeira felicidade de um homem.” (3)


A aliança de Kerouac e Cassady gerou um estilo e uma obra marcantes, juntos conquistaram a literatura, formaram uma geração, um movimento e ficaram pra posteridade. Após a efervescência vivida e narrada em On the road, a amizade e a vida de ambos esfriaram pouco a pouco. Como tantos outros artistas que queimaram e queimaram em suas próprias chamas, ambos tiveram um final melancólico. “A estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris” também é a estrada da tristeza, do alcoolismo, da solidão e da morte anônima – e tudo isso faz parte de uma vida intensa; ela vai, acaba, tem que acabar, mas fica-nos a obra e a pergunta: por que a amizade e a sua meia-irmã, a rivalidade, seriam tão fundamentais para criar? Que tipo de aliança se faz necessária para entrarmos na gênese da criação? Lembremos o que nos diz William Blake em seus provérbios do inferno: “o Progresso constrói estradas retas, mas as estradas tortuosas sem Progresso são os caminhos do Gênio.”


É necessário que nos descaminhem, que nos tirem dos trilhos, do progresso frio e estéril que a homogeneidade nos coloca. Tal é a tarefa dos amigos-rivais. Tal é a tarefa da aliança ou das núpcias entre o céu e o inferno.

 

(1) Saga de Dulois

(2) On the road

(3) A sabedoria da vida, Schopenhauer, p. 117, apud A história da filosofia, Will Durant (coleção Os pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 2000.

 

São Paulo, 04 de setembro de 2016