2001, uma odisseia no espaço, 1968

 

"2001, uma odisseia no espaço": o binômio razão-pragma toma o poder

 

 

 

É espantoso ver como uma tal crença

dispõe tiranicamente de todo real empírico.

 

Friedrich W. Nietzsche

 

 

 


A tomada de poder da razão se estruturou no ano da discórdia fundamental quando as forças cósmicas intercederam pelos homens. O princípio de tudo é o relâmpago. Por uma falha ou fraqueza congênita os homens fizeram um mau usufruto das benesses cosmológicas; ofuscados pelo relâmpago, tomaram suas vistas gastas pela verdade e assim mal disseram o mundo. Seguindo ofuscados, os homens cederam à razão que tudo calcula e discerne, o caminho mais cômodo e seguro. Da era dos macacos à conquista do espaço num átimo. Esta tudo lá em 2001, uma odisseia no espaço. É impressionante como o roteiro de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke tangencia a filosofia. Temos na primeira parte do filme uma aula extraordinariamente ilustrada de teoria do conhecimento. Temos também, de forma simplificada, uma teoria da evolução. Dois grupos são apresentados no filme. Fisicamente eles não se diferem em nada; mas com o desenrolar do enredo vemos que um dos grupos se distingue pela força e coragem: eles detêm uma poça e a controlam, proibindo o seu uso pelo outro grupo. Mas algo se processa no cosmos e o grupo dos fracos é beneficiado com isso. A junção dos astros e o monólito grafite emanam uma força inaudita que (talvez por mero acaso) promove uma transmutação entre o grupo dos covardes. Após isso temos a cena memorável do devir-homem do macaco: (ocioso e, talvez, faminto) um dos macacos do grupo dos fracos se detêm sobre uma carcaça de mastodonte, ali, após recolher um osso e usá-lo distraidamente para golpear o esqueleto, ele desenvolve todas faculdades mentais que distinguem o homem tal qual o conhecemos. Primeiro a imaginação: ele rememora e representa os dados confusamente; depois a razão: ele liga os dados adequadamente por meio da noção de causalidade; em seguida a intuição: que integra os dados singularmente e promove o devir propriamente dito (cf. Espinosa II, 40, esc. 2). O macaco tem, portanto, naquele momento, a centelha que distingue os criadores; percebe que usando o osso ele pode intensificar a sua força. Ele criou uma arma: seu braço auxiliado pelo osso do mastodonte desenvolveu o que Gilles Deleuze chama de agenciamento maquínico. A partir daí as coisas mudam. Os fracos, auxiliados pela descoberta de seu (agora) líder, passam a caçar com mais eficiência; e, bem alimentados e confiantes, partem para a conquista da poça. Dá-se então a batalha entre os macacos fortes e os hominídeos. A covardia permanece, porém, e só quando o líder dos macacos fortes vai ao chão com o primeiro golpe da mão-osso é que eles compreendem de fato a força e o poder que possuem. Eles tomam o controle da poça, se alimentam abundantemente, arregimentam fêmeas e procriam – alastrando sobre a Terra sua raça de homens covardes e fracos, porém racionais e pragmáticos. 2001... então promove um salto sobre as eras e temos então o extraordinário bale sideral.


O que podemos inferir de tudo isso? Do raio-transmutação, do acaso cosmológico, os macacos-hominídeos só apreenderam o mais elementar. Em outras palavras, eles fizeram do devir homem um empreendimento mesquinho. Embora abençoados, iluminados pela transmutação, continuaram a agir de acordo com suas necessidades ou afetos básicos: fome, sede, excitação sexual; e poderíamos dizer ainda, de acordo com o ressentimento, o instinto de vingança, a vontade de poder que se traduz na tomada da poça e na expulsão do grupo dos fortes. Como disse acima: os macacos fracos foram ofuscados pelo binômio razão-pragma. Eles sentiram de forma indubitável a força emanar em seu próprio corpo: agenciamento maquínico entre a mão e o osso, uma arma. A vontade de potência então, logo depois, se expressou em termos de vontade de dominação e controle. O macaco inventor poderia ter seguido outros caminhos; poderia se tornar o primeiro sábio- criador-errante da história, o primeiro filósofo, mas em vez disso preferiu retornar ao grupo, relatar a boa nova, e liderá-los na conquista da poça. O ressentimento venceu; é a primeira manifestação do niilismo na natureza e o princípio da história humana. Isto de certa forma é bem evidente e aceitável: o macaco gênio estava ainda muito ligado aos costumes e ao seu grupo, e, por mais que tenha alcançado um devir, ele ainda possuía em si o germe da fraqueza e não poderia dessa forma mudar de natureza, mudando também, com isso, o seu destino. Ele retorna, e graças a essa atitude se torna possível tudo o que vem depois... o bale das naves espaciais. O binômio razão-pragma venceu e por meio dele, inexoravelmente, a civilização foi erguida.


Uma coisa é notável: a importância que 2001... dá não só ao filosofo Friedrich Nietzsche (o devir homem do macaco ocorre ao som do poema sinfônico Assim falou Zaratustra, de Richard Strauss) mas também a Espinosa e a alguns pensadores pré-socráticos. Temos na primeira parte do filme referências a Anaxágoras, Heráclito e Pitágoras. Anaxágoras desenvolve uma tese no mínimo surpreendente para a época: o principio de todas as coisas (no que se refere às faculdades mentais ou ao desenvolvimento humano) é a mão: foi ela que permitiu a evolução humana. Uma tese materialista, imanente, de extraordinária acuidade e de fácil constatação empírica; talvez influenciada pelo desenvolvimento crescente das cidades democráticas helênicas, calcadas no trabalho conjunto de um corpus de homens em igualdade de forças. Heráclito nos legou aforismos que muito nos auxilia aqui. É dele a sentença: “A guerra é o pai de todas as coisas e de todas o rei; de uns fez deuses, de outros homens; de uns, escravos, de outros homens livres”. E também: “O relâmpago governa o universo” (na tradução de Gerd A. Bornheim); ou: “O raio conduz todas as coisas que são” (na tradução de Emmanuel carneiro Leão); ou ainda: “De todas (as coisas) o raio fulgurante dirige o curso” (na tradução de José Cavalcante de Souza). Com Pitágoras temos a espiritualização da matemática (instrumento ou recurso por excelência da tradição racionalista), e sua conexão com o cosmos. Todos esses autores parecem servir de inspiração para a concepção do roteiro de 2001...


Os pensadores originários, embora importantes no filme são logo depois abandonados, e aí (com o desenrolar da faculdade razão-pragma) entra em cena (ou em jogo) outros pensadores que, segundo a interpretação de Martin Heidegger, fundaram nossa civilização tal qual a temos hoje: Sócrates, Platão e Aristóteles. O pensamento cede o seu posto à razão-pragma, isto é, à filosofia, a uma teoria, linguagem ou lógica bem instituída e bem regulamentada de conhecimento. A amigo da sabedoria se torna então um cão dócil, dissimulado e prepotente. A tomada de poder da razão (instrumento lógico-prático que tudo discerne e opõe) contra o pensamento (relâmpago que governa o cosmos e que estabelece a isonomia entre as faculdades – ou a harmonia ou a unidade essencial de que fala Heráclito: “Por isso o comum deve ser seguido. Mas, a despeito de o logos ser comum a todos, o vulgo vive como se cada um tivesse um entendimento particular” (F 2); e: “Tudo se faz por contraste; da luta dos contrários nasce a mais bela harmonia (F 8)”; e: “Só uma coisa é sábia: conhecer o pensamento que governa tudo através de tudo (F 41)” e ainda: “O pensamento é comum a todos”).


Em resumo, pode-se dizer que a razão-pragma prevaleceu na história e o primeiro homem, impotente e ressentido, a seguiu em detrimento do pensamento. Eis a gênese de nossa civilização. Isto está em partes de acordo com as interpretações de Nietzsche e de Heidegger. Nietzsche em suas analises sobre a relação entre os tipos senhor e escravo diz que tudo de grande que foi criado deve-se aos senhores: linguagem, pensamento, Estado, e usa como exemplo e comprovação os pensadores pré-socráticos – como aqueles que conceberam os pensamentos e os tipos essenciais da filosofia. Heidegger retoma as pesquisas de Nietzsche e desenvolve uma grave critica à filosofia, argumentando que após os pensadores originários vivemos uma ausência de pensamento, sendo este substituído, com Platão e Aristóteles, pelo conhecimento técnico-científico.


2001..., no entanto, remonta o início do predomínio da razão-pragma, ou nos termos heideggerianos, do conhecimento técnico-científico, a uma época muito anterior à Grega Antiga. A aurora da humanidade, ou do devir-homem, se confunde com o advento da razão-pragma: o devir homem se deu somente e justamente por conta desde conhecimento que com o tempo passou a definir o próprio ser e conceito de homem, nos termos aristotélicos: um animal racional. Seguindo esta interpretação podemos dizer que a virada histórica ocorrida na Grécia a favor da filosofia foi tão somente uma exacerbação do binômio razão-pragma, do seu uso indiscriminado. Os gregos, como analisa Jean-Pierre Vernant, direcionaram cada vez mais os seus esforços para um conhecimento utilitário e político voltado para a cidade, com isso eles iniciaram a nossa era, ou o que chamamos de civilização. Esta não surge sem se opor a muitas coisas: aos povos místicos, instintivos, nômades e agressivos, por exemplo. E não teríamos aqui novamente a cisão entre dois grupos, como em 2001...? Os gregos detentores de conhecimentos técnico-científicos e os outros povos com sua máquina feroz de guerra. Essa relação que Nietzsche ana- lisou tão bem preenche o nosso horizonte. Por ela podemos distinguir dois tipos de homens (senhor e escravo) e dois tipos de conhecimento (racional-pragmático e intuitivo-místico). Isto no entanto colocaria os pensadores originários do lado dos homens racionais pragmáticos? De certa forma. Pois não podemos de modo algum, a partir destas considerações, analisar os filósofos pré-socráticos como um grupo homogêneo. O pensamento ou a razão não nasce com os gregos, mas eles assinalam bem o momento em que ambas deixaram o seu casulo: o pensamento se transformando em uma borboleta de fogo; e o razão-pragma em uma aranha cuja teia se propagou pelo mundo. Os pensadores pré-socráticos na visão de Nietzsche distinguem-se dos filósofos posteriores por possuírem uma certa unidade de estilo entre o pensamento e a vida (como assim analisa Jean Pierre Vernant e Gilles Deleuze); já Heidegger toma os pensadores originários como os únicos que pensaram (ou auscultaram) o Ser (em sua essência). Podemos dizer que os primeiros filósofos estavam até certo ponto integrados à sociedade e em afinidade com a natureza. O que ocorreu depois foi uma aberração: a valorização exacerbada do binômio razão-pragma. Até aquele momento, essa faculdade de conhecimento seguia um progresso lento, embora contínuo; com os Gregos temos uma inclinação maior para o racionalismo e a consequente disseminação da teia racional. O homem passou a fazer da razão o seu mais precioso artigo de fé.


Nietzsche, em alguns momentos de sua obra, sob a inspiração da nascente antropologia, parece insinuar que a razão, como tudo o mais, tem sua origem, e que portanto é possível, mesmo com a carência completa de documentação, desenvolver uma genealogia da razão. É o que podemos ver em 2001... A questão principal, no que se refere aos gregos, não é saber se com eles temos o início ou não do pensamento ou da razão; mas como a sua comunidade fez da razão uma potência que se disseminou pelo mundo. O problema da gênese, ou de sua dificuldade, é situar os fatos historicamente e a partir deles desencadear tudo o mais. Acontece que tais fatos não ocorrem de forma continua e linear; não se trata de um progresso ou de um processo contínuo. A genealogia em Nietzsche é mais uma análise psicológica do que, como em Foucault, uma analise histórica. Embora Foucault postule uma descontinuidade histórica, ele procura situar com o máximo de exatidão documental o início de um fato ou acontecimento. Com Nietzsche temos teorias psicológicas verificáveis, empíricas, bastante plausíveis. As fórmulas ou hipóteses psicológicas de Nietzsche indicam ou reivindicam um início para a razão e possibilitam a sua genealogia. A genealogia é um empreendimento critico e visa justamente situar, senão os marcos fundamentais, pelo menos as características e os limites de determinados acontecimentos e o seu posterior desenvolvimento histórico. Eis que a razão tem sua origem histórica como tudo o mais. E a pergunta principal é, uma vez aceito isso: como ela tomou o poder sobre o corpo, o mundo e mesmo sobre a divindade? Tudo hoje é considerado ou concebido à imagem e semelhança da razão. O corpo humano, o mundo e Deus foram dissecados, divididos, discernidos, e, em sequência, domesticados, enfraquecidos. Mas a razão é só uma parte do corpo, nem ao menos a mais poderosa ou antiga. Em um de seus aforismos, Nietzsche diz que o cérebro é o órgão mais recente e menos desenvolvido do corpo. E Espinosa nos pergunta: o que pode um corpo? Segundo Deleuze esse era um problema essencial tanto para Espinosa como para Nietzsche. Como a razão se originou e como ela tomou o controle sobre o corpo? Estas questões são de suma importância pois, por meio delas, pode-mos entender melhor o que chamamos de civilização, e refrear o processo que levou a faculdade racional a reinar sobre o corpo e o mundo, rumo ao universo.

 

Rio de Janeiro, fevereiro de 2008