Voodoohop na Interzona

 

Cartaz de um Voodoohop realizado em Berlim. Fotografia de Marcelo Paixão

 

Interzona: Como surgiu o projeto e o nome "Voodoohop"? Ele foi concebido e pensado especificamente para SP, essa megalópole caótica e subdesenvolvida?

Laurence Trille: Quando encontrei o Thomas pela primeira vez na Augusta, fazia 3 semanas que ele tinha criado a noite “Voodoohop”. Era ele e alguns amigos discotecando na sexta-feira no Bar do Netão. Conversamos, e acho que ele nem sabia muito bem o porquê do nome “Voodoohop”, só soava bem e ponto. Para mim a referência ao vodu do Haiti e a macumba está se revelando com o tempo e faz cada vez mais sentido. Musicalmente Thomash e os Djs residentes – como, por exemplo, o Piero Chiaretti ou a Marina Sarno – estão pesquisando a junção de ritmos africanos com novas sonoridades, buscando o estado de transe, utilizando elementos de macumba e vodu. Visualmente a associação com artistas como Keroøàcidu Suäväk foi muito importante, no trabalho dele tem varias referencias às religiões animistas e primitivas, um misticismo que podemos aproximar do vodu.
Thomas sendo alemão, e eu, francesa, naturalmente injetamos idéias e um jeito europeu, mas eles foram se transformando e se adaptando à cidade de São Paulo, e os artistas que agregamos ou simplesmente nosso público tiveram uma grande participação na construção e direção do projeto. O centro de São Paulo com seus prédios abandonados e população eclética me faz pensar na Nova York dos anos 70, a Nova York de Midnight Cowboy. O centro constituiu o terreno perfeito para a expressão de nossa criatividade e execução de nossas idéias.

Thomas Haferlach: O Projeto Voodoohop na verdade não foi planejado. Ele se desenvolveu a partir do desejo de tocar músicas ecléticas no Bar do Netão. O que aconteceu depois disso não estava previsto, não tínhamos um objetivo específico, demos um passo após o outro, fazendo o que a gente achava divertido e o que a gente sentiu que seria a próxima etapa mais lógica. O nome surgiu porque a noite/balada é um ritual para se liberar dos pesos ou espíritos ruins da semana. É um ritual coletivo, uma forma moderna de rituais como o vodu. Não levamos isso muito sério no sentido de uma religião. É uma relação mais abstrata.

Interzona: Epícuros dizia que o prazer seria o fim supremo da vida. Na sua obra “Do Fim Supremo”, ele dizia: “Não sei conceber o bem se excetuo os prazeres do palato, os prazeres do sexo e os prazeres derivados da audição ou da contemplação da beleza”. No site da Voodoohop, vocês dizem que o evento tem um clima hedonista. O prazer é o objetivo?

Laurence Trille: A idéia é não ter vergonha dos prazeres, se sentir livre. Nossos espaços são sempre pensados para que as pessoas se sintam à vontade e se libertem, a questão é romper com os tabus. E no final é dentro dessa energia de libertação e de criação que todo mundo sente prazer. É preciso não se levar muito a sério, voltar a ser criança. De alguma forma, as crianças são hedonistas, elas são sinceras e criativas e não sentem ainda o peso das regras da sociedade. Para a gente hedonismo não rima com egoísmo, mas com compartilhamento, implica um momento de união, como os rituais tribais de várias civilizações antigas que tinham como objetivo unir as pessoas; é um momento de conexão, um prazer de comunhão. Adoramos organizar eventos na rua, queremos fazer mais.

Thomas Haferlach: Eu cresci em um ambiente em que o pensamento científico tinha muita força, então para mim a vida não tem uma moral ou sentido. Somos o resultado de várias reações químicas aleatórias. Ao invés de tentar buscar grandes objetivos para a vida, a gente deveria aceitar que ela não tem sentido e fazer a única coisa lógica, que é se divertir o máximo possível sem tolher a liberdade e o prazer das outras pessoas. A gente está tentando criar um espaço para isso. Mas prazeres não precisam ser imediatos. Por isso gostamos de nos envolver com projetos culturais para tentar junto com a nossa comunidade aprender novas formas e fontes de prazer.

 

Voodoohop vai a Bahia

 

Interzona: No site, novamente, vocês dizem que se trata de um evento artístico atípico, há performances, projeções, exposições fotográficas... Andy Warhol fez algo nessa linha ao criar a Factory, onde havia festas, apresentação de bandas (como o Velvet Underground) e exposições. Como é a fruição de arte em um evento hedonista? Os museus não são lugares adequados para a arte contemporânea?

Laurence Trille: Como acabei de dizer, a idéia de hedonismo deve ser entendida como a de “liberdade”, e vejo uma ligação direta entre arte e liberdade. Museus são lugares de exposição, mas não de criação. Uma festa não é um lugar perfeito para exposições, mas torna a obra uma experiência que o público pode viver, incorporar e reagir. E o artista pode interagir com o público. Gosto também da idéia de festa como obra, com um lado visual, musical e experimental que coloca o público num “estado”, numa vivência especial. Criar um caos artístico para ser sentido em vez de pensado.

Thomas Haferlach: Como muitas pessoas em São Paulo passam 50% da vida no trabalho, 25% na balada e 25% dormindo, tentamos maximizar a balada, temos ao mesmo tempo arte, cultura e diversão. Assim o paulista não precisa voltar para casa com má consciência depois de uma noite excessiva. Mas, falando serio, eu acho que os museus me deixaram traumatizado; quando era criança meus pais me forçavam a ir a várias exposições chatas, e eu sempre fui hiperativo, ficava entediado. Prefiro uma experiência mais imediata, sensorial, e isso um ambiente de festa pode oferecer.

Interzona: Ambientes festivos e libertinos frequentados principalmente por jovens e artistas são geralmente atacados pela opinião pública e condenados pelas leis. Parece sempre haver um esforço para domesticar algo que não pode ser domesticado. Em 2007, a prefeitura de SP, comandada por Gilberto Kassab, foi destaque na mídia por fechar um famoso bordel. As leis do silêncio e antifumo afetaram bastante os bares, os restaurantes e principalmente os eventos festivos. O Voodoohop foi multado em uma ocasião e alvo de reportagens de TV e jornais. Hoje se vê que o efeito disso não foi tão danoso, parece que bares, restaurantes e eventos se reorganizaram, as coisas seguem seu curso. Mas o que vocês pensam dessas leis? Sinal de que nós brasileiros estamos nos tornando civilizados como os europeus? Ou trata-se talvez de um espírito ordeiro excessivo, de algo abusivo, de uma tentativa de padronizar os modos de vida?

Laurence Trille: Acho que há uma tendência mundial, todas essas novas leis de controle e higienização são apresentadas como algo que melhoraria o dia-dia do cidadão. Como se um mundo mais civilizado e melhor tivesse que ser necessariamente cheio de leis e interdições! Para mim trata-se simplesmente de uma redução desnecessária das nossas liberdades. Acho bem interessante o caso especial de Berlim, uma capital ocidental “civilizada” onde a liberdade individual continua muito grande. É possível beber na rua, fumar dentro dos bares, abrir um bar ou um clube em qualquer esquina; não tem cerca, placa de interdição em todos os lugares... Mas as pessoas tem uma noção de respeito muito grande, elas valorizam essas liberdades e não abusam. Tocamos no festival Fusion, um festival de 60000 pessoas, e não tinha quase nenhum segurança. Claro que não é uma coisa possível de mudar em um dia, mas acho mais inteligente investir na educação das pessoas em vez de gastar em medidas de restrição e interdição. Irritam-me muitas dessas leis superficiais que apenas parecem modernas e, na verdade, não possuem qualquer consistência.

 

Volatille, ser da noite, numa Voodoohop realizada na Trackers. Fotografia de Ariel Martini


Interzona: Recentemente um DJ estrangeiro veio a São Paulo e disse que gostava de trabalhar aqui porque o Brasil é uma terra sem lei, caótica. Apesar de tudo que dissemos na questão anterior, apesar de vocês terem enfrentado essa legislação nova e mais dura, vocês acham que aqui as leis são mais frouxas, que ainda há uma margem boa de tolerância com a loucura? Em outros países seria possível realizar o Voodoohop nas condições em que ele é realizado hoje?

Laurence Trille: Apesar das novas leis e dessa tendência para a “higienização”, São Paulo e o Brasil em geral tem uma tradição de tolerância muito grande com a cultura de festa e da loucura (será que tem a ver com a cultura do Carnaval?). Várias vezes a gente teve que tratar com uns velhinhos ou pessoas bem caretas para alugar espaços. Sempre ficamos com receio de reações conservadoras ou negativas da parte deles em relação a nossa festa, mas eles sempre adoram! É bem mais difícil encontrar esse tipo de reação positiva na Europa!
Tem também mais tolerância com musica e som alto; acho que o nível sonoro no Brasil é geralmente mais alto. Som da TV, nível sonoro dentro de um restaurante. O brasileiro fala mais alto e ouve o som mais alto! Qualquer boteco brasileiro vai ter um som relativamente mais alto em comparação com um bar básico europeu. Tem também uma flexibilidade com os horários; na Europa, com exceção de Berlim, as festas terminam super cedo.

Thomas Haferlach: Concordo com a Laurence, mas queria acrescentar que no Brasil essas leis não estão sendo aplicadas tão rigorosamente. Se você não encher o saco de ninguém, não chamar atenção demais, e se nenhum repórter babaca escrever uma matéria sobre você, há certa liberdade. São Paulo tem tantos problemas... A polícia e a prefeitura têm coisas mais importantes para fazer, não vão ficar interditando um evento promovido por um bando de pseudohedonistas.

 

Thomas e Laurence numa Voodoohop realizada na Trackers


Interzona: O Voodoohop ficou conhecido em SP de maneira razoavelmente rápida. As redes sociais devem ter contribuído muito para isso, hoje tudo parece passar por aí. Vocês parecem também utilizar as novas tecnologias com naturalidade para propagar o evento. Alguma relação com sua formação em inteligência artificial, Thomas? Para vocês, há alguma outra coisa que explique o fato de vocês terem um público cativo, fiel e grande?

Laurence Trille: Para mim, o sucesso da Voodoohop é indissociável dessa capacidade que o Thomas teve de entender e utilizar as novas tecnologias e redes sociais. Antes de vir pro Brasil, organizava uma festa em Paris bem parecida com a Voodoohop, mas sempre encontrei dificuldades em divulgá-la. As pessoas ficam perdidas com o excesso de informação, tem que achar um jeito de chamar a atenção, com originalidade, e o Thomas fez isso.

Thomas Haferlach: Acredito que parte desse crescimento rápido definitivamente tem a ver com o nosso uso experimental das redes sociais. Usamos vários pequenos aplicativos que fizeram as festas bombar. Uma vez desenvolvemos um quiz online sobre os transtornos de personalidade das pessoas. Elas compartilhavam o resultado desse teste, e aí a festa era para curar esses transtornos, com uma sala para medicação, consultórios médicos etc. Agora tenho um perfil psicológico do nosso público! Claro que não, o teste foi uma brincadeira). Em outro aplicativo, por exemplo, no flyer, as pessoas podiam colocar a imagem dos seus rostos em cima do corpo de uma ovelha. Estou pensando agora em um aplicativo para que as pessoas possam achar o lugar da festa usando smartphone e GPS, alguma coisa que te force a passar por vários lugares da cidade, mas ainda não é nada definitivo.

Interzona: Timothy Leary foi um dos precursores da experimentação programada de drogas. Para ele a ambientação (luzes, decoração, odores, projeções, música etc.) era essencial para se ter uma boa "viagem". A escolha do espaço e a preparação do ambiente são determinantes no projeto Voodoohop? Seria esse um dos seus maiores diferenciais?

Laurence Trille: Desde sempre adoro viagens, adoro o fato de estar num novo lugar (com novos cheiros, cores, sons, outra língua, outro visual...), real ou irreal. Quando era criança criava espaços para viajar: cabanas de madeira e palha na natureza, onde me sentia em outra civilização, foguetes de papelão com várias salas, barraca das estranhezas, onde entrava com olhos fechados e tocava vários objetos de consistências surpreendentes. Adorava essas experiências e esses espaços onde você se sente num outro mundo.
A Voodoohop possibilita a criação desses outros mundos, e cada elemento é importante para transformar a festa em experiência imersiva e “viajante”. Para mim, as obras do Olafur Eliasson são um modelo de experiência imersiva geradora de novas sensações.

Thomas Haferlach: Não sei se é bem um diferencial, porque cada casa noturna, de certa forma, cria uma ambientação para dirigir a viagem das pessoas. É uma questão de estética – a gente gosta das coisas espontâneas, às vezes malfeitas, que surpreendem e mudam cada vez que se olha para elas. O que mais tento evitar é ter todos os ambientes com som alto ou com uma multidão de pessoas. Para mim sempre tem que haver um lugar para poder respirar, relaxar e conversar. Também gosto de evitar logomarcas nos ambientes, porque para mim quebra o clima. O Brasil parece adorar logos, os espaços são preenchidos com o maior número possível de logomarcas.

Interzona: Moralismo e sedentarismo parecem ir bem juntos. É por isso que o evento é itinerante? Para fugir da moral e dos bons costumes? Qual a inspiração para esse nomadismo? Falem sobre a Trackers, esse prédio um tanto decadente à maneira dos dândis, o epicentro do Voodoohop.

Laurence Trille: Moralismo... Talvez seja um pouco exagerado unir essas duas coisas; para mim sedentarismo é sinônimo de rotina e repetição. Gostamos de surpreender as pessoas com novos espaços, especialmente espaços localizados em áreas da cidade por onde elas nunca se aventuraram. Além de surpreender e criar algo novo, queremos também conhecer mais a cidade e criar uma agitação em áreas abandonadas. Adorei montar nosso palco da virada cultural na Luz e gostaria de fazer mais coisas nesse bairro.
A Trackers é o típico exemplo de prédio antigo do centro descuidado pelos proprietários. Tivemos a sorte de encontrar Rubens (Peterlongo), que administra o prédio e montou um projeto de oficina de vídeo lá há alguns anos. Ele trabalhou durante muito tempo em clubes e continua a ter uma visão alternativa da noite, que combina com a nossa. Desde que estabelecemos nosso escritório na Trackers e começamos a realizar a festa com mais regularidade no segundo andar, vimos outras festas nascer e acontecer no prédio (Carlos Capslock, Calefação...). Para mim é um dos poucos lugares onde me sinto realmente livre, totalmente despretensiosa e com uma personalidade forte. Ainda dá para fazer muitas coisas lá!

Thomas Haferlach: Eu gosto de descobrir coisas novas, por isso ficar parado no mesmo lugar me entedia. Parece também que quanto mais escolhemos lugares fora do roteiro normal, melhor fica o clima da festa, e o público que segue a gente nessas viagens é também mais interessante do o que vai sempre para os mesmos lugares. A Trackers – aka Associação Brasileira de Empresários de Diversões – vai trazer ainda muitas surpresas. Novos espaços secretos, jardins escondidos, salas de rituais audiovisuais e muito mais

 

DJ Thomash na sacada da Trackers. Fotografia de Ariel Martini

 

Interzona: Há alguma ressonância entre o projeto de revitalização do centro da cidade de São Paulo pela prefeitura e a proposta de ocupação artística da Voodoohop? Essa revitalização não pode acabar justamente com o que há de singular no local? “Recuperar áreas degradadas, melhorar a qualidade ambiental, alavancar a economia da região, promover a inclusão social e o repovoamento do Centro”... São propostas louváveis, mas que escondem um forte ensejo econômico: especulação imobiliária, desapropriação de moradores carentes, excesso de leis coercivas, fechamento de estabelecimentos libertinos (como cinemas pornográficos e bordeis). O centro vai se aburguesar? Nova York, por exemplo. No filme “After Hours” de Martin Scorsese se vê um bairro cheio de artistas e pirados de todo tipo, uma imagem do que foi esse bairro outrora. Hoje é um dos metros quadrados mais caros de NY. A revitalização artística seria a melhor alternativa?

Laurence Trille: Na Europa, a palavra “gentrificação” está na moda, as pessoas sempre falam disso como de uma praga, para mim é simplesmente um processo natural. Foi, por exemplo, o que aconteceu na Praça Roosevelt, onde ninguém queria morar 10 anos atrás (antes dos Satyros criar o primeiro teatro); hoje você vê o preço do aluguel triplicar e os jovens alternativos e os mais pobres se mudar para outras áreas mais baratas. O caso do projeto Nova Luz é bem diferente porque não rolou esse processo “natural”. A prefeitura e as imobiliárias anteciparam essa mudança e já compraram, desapropriaram e estão construindo brutalmente num bairro onde a população não estava preparada. Eles querem fazer em 2 anos o que normalmente demora 15!
Acredito que a revitalização artística iria acabar dando o mesmo resultado (especulação imobiliária, mudança dos pobres...), como na Praça Roosevelt, mas pelo menos criaria uma alma para o bairro e um espaço social.

Thomas Haferlach: Eu acho o centro o lugar mais decadente e bonito de São Paulo. Fiquei com uma grande pena quando o vi sem cultura e bastante abandonado à noite. Eu fico muito feliz de estarmos fazendo a diferença, contribuindo para a sua ocupação. Sinto que a área está mudando cada vez mais rápido. Quero mais cafés e bares sem essa luz branca fluorescente, sem essa maldita comanda e com sofás de segunda mão.

 

Caboclo entrega os pontos depois de uma noitada Voodoohop na Trackers. Fotografia de Marcelo Paixão

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

É um ritual coletivo, uma forma moderna de rituais como vodu. Não levamos isso muito sério no sentido de uma religião. É uma relação mais abstrata.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

De alguma forma, as crianças são hedonistas, elas são sinceras e criativas e não sentem ainda o peso das regras da sociedade. Para a gente hedonismo não rima com egoísmo, mas com compartilhamento, implica um momento de união.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Museus são lugares de exposição, mas não de criação. A festa não é um lugar perfeito para expor, mas coloca a obra como uma experiência que o publico pode viver, incorporar e reagir. E o artista pode interagir com o publico.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

(...) os museus me deixaram traumatizado; quando era criança meus pais me forçavam a ir a varias exposições chatas, e eu sempre fui hiperativo, ficava entediado. Prefiro uma experiência mais imediata, sensorial, e isso um ambiente de festa pode oferecer.