Cristina Pescuma na Interzona

 

Cristina Pescuma - fotografia por Sônia Borges

 

Interzona: No livro “A arte de escrever”, Schopenhauer diz: “Um livro nunca pode ser mais do que a impressão dos pensamentos do autor. O valor desses pensamentos se encontra ou na matéria, portanto naquilo sobre o que ele pensou, ou na forma, isto é, na elaboração da matéria, portanto naquilo que ele pensou sobre aquela matéria. O tema sobre o qual se pensa é bastante diversificado, assim como o mérito que ele concede aos livros. Toda a matéria empírica, portanto tudo o que é histórico, ou físico, todos os fatos, tomados por si mesmos ou num sentido mais amplo, estão incluídos nesse caso. A particularidade de tais livros diz respeito ao objeto, por isso um livro pode ser importante seja quem for o autor. Quanto ao que é pensado, em contrapartida, a particularidade diz respeito ao sujeito. Os objetos podem ser conhecidos e acessíveis a todos os homens, mas a forma de concebê-los, o que é pensado confere aqui o valor e diz respeito ao sujeito. Por isso, se um livro desse tipo é excelente e sem igual, o mesmo vale para seu autor. (...)” Poderíamos utilizar esse conceito na fotografia? Por exemplo, um fotojornalista seria aquele cuja atividade de produção de imagens é relevante como registro de “objetos”. O autor não é importante, qualquer fotógrafo com bom domínio técnico poderia produzir uma imagem de uma determinada coisa (pessoas, catástrofes naturais, guerras etc.). Ainda que as imagens produzidas por fotojornalistas variem em termos técnicos (uma abertura específica, uso ou não de flash, enquadramento), elas seriam documentais, registros de um objeto dado. Já o fotógrafo conceitual seria aquele que concebe um objeto de uma forma particular, singular, única; mesmo registrando o mundo, ele lutaria para imprimir suas concepções, sua estética, para imprimir uma “forma” particular – o que o caracterizaria como artista. Concorda com essa visão?

Cristina Pescuma: Acredito que forma e matéria estão tão imbricadas que acabam sendo inseparáveis, elas vêm sempre juntas, "o meio é a mensagem", como dizia Mcluhan. Portanto, nesse sentido, o fotojornalismo já é uma linguagem, uma forma específica de tratar uma matéria. Mesmo diante das mudanças tecnológicas ocorridas nos últimos anos, há sempre maneiras diferentes de abordar o mesmo assunto, a fotografia não é uma atividade mecânica em que basta conhecer a técnica, há sempre um ponto de vista que direciona o olhar e faz o enquadramento. O fotojornalista trabalha com informação, já o artista não está preocupado em informar nada, ele quer, com efeito, criar algo ou trazer algo à tona, tornar visível alguma coisa. Aí talvez até possa se dizer que ele está sempre escapando, sempre ultrapassando o meio, esgarçando a linguagem, produzindo um desvio tanto na maneira de registrar quanto no que será abordado. E atualmente há muitos trabalhos que rompem com a linha entre o real e o fictício, pode-se dizer que estão entre o documental e o construído, entre o instantâneo e a pose, embaralhando as fronteiras. Algo como uma fotografia para além da fotografia, se posso dizer assim.

Interzona: Cartier Bresson dizia que a fotografia se apresentava para ele. Uma situação específica provocava nele uma emoção intensa, o que o fazia clicar. Ele dizia que para fotografar era preciso ter os olhos, as mãos e o coração em absoluta ressonância. Sebastião Salgado disse certa vez que essa era uma visão demasiadamente romântica. Para Salgado, um homem sempre traz um mundo, uma história, uma cultura quando se depara com uma situação que resultará numa imagem. Um fotógrafo é um contemplador ou alguém que intervém ativamente numa situação, que introduz na imagem sua história, sua cultura? Retomando o tema da pergunta anterior, será realmente todo fotógrafo imprime sua “forma”?

Cristina Pescuma: Bom, é difícil responder a essa questão, que "todo fotógrafo" é esse? Pensando em termos de história da arte, sempre se está partindo de algum lugar, como diz Borges, sempre se escolhe seus antecessores. E, a partir daí, inventa-se seu próprio caminho. Mas falar assim fica abstrato. Pensando nesses dois fotógrafos que você citou, tanto Cartier-Bresson quanto Salgado estão certos, cada um seguindo os impulsos de sua própria obra. Mas essas questões estão mais ligadas à fotografia moderna, não à contemporânea; atualmente a problemática se deslocou, não se busca exatamente uma verdade do acontecimento, o instante decisivo, por exemplo. Cada vez mais a fotografia é construída, não se acredita na possibilidade de – e talvez nem mesmo se deseje – captar algo que esteja "pronto" ou acontecendo naquele momento. Ainda que seja isso também. Desde o final dos anos 60, mesmo os que fazem uma abordagem que se pode chamar de documentária produzem de modo diferente, exploram outros universos. Então, sim, cada um imprime sua forma.

 

Les Dormeurs - Sophie Calle

 

Interzona: “Aqueles que escrevem sobre fotografia escrevem apenas para aqueles que escrevem sobre fotografia”, disse Helmut Newton em uma entrevista. Os textos sobre fotografia (desconsiderando os técnicos, claro) interessam aos fotógrafos?

Cristina Pescuma: A quais textos será que Helmut Newton está se referindo? Muitas vezes, sinto que o trabalho teórico é meio absurdo, estou sempre em crise, achando que não há sentido ficar falando de arte, ainda mais porque acredito que a arte é para ser sentida e que ela própria tem o poder de expressar suas questões. Mas, ao mesmo tempo, é para ser pensada, e é tão bom ler a respeito de arte que com certeza os textos não interessam somente aos teóricos. E considerando que o fotógrafo quer pensar sobre seu próprio trabalho, a produção teórica sobre fotografia e sobre a imagem em geral é de grande interesse.

Interzona: Antigamente, mesmo que fossem usados diversos rolos de filme, nunca se chegava à quantidade de cliques que hoje se chega numa sessão fotográfica com câmeras digitais. A edição se tornou uma coisa extremamente trabalhosa, e o acúmulo de dados ocasionou novas questões sobre armazenamento. A falta de rigor quanto ao que fotografar seria o preço a ser pago pela abundância de recursos? Quais seriam os desafios e riscos em relação a esses novos instrumentos (e procedimentos)?

Cristina Pescuma: Na verdade, hoje há tanto excesso de tudo à nossa disposição, e assim a produção de imagem chegou a um nível assustador em termos de quantidade. Acho que a grande questão atualmente é produzir uma imagem que tenha força, que seja capaz de dar uma direção à pesquisa do artista, que possa se diferenciar em meio a essa massa de imagens que surge a cada minuto no mundo.

 

"É preciso que a arte seja bela, é preciso que os artistas sejam bonitos" - Marina Ambramovic


Interzona: Há atualmente uma sobrevalorização da técnica? A perfeição excessiva das imagens digitais, talvez seu excesso de realidade, seria sinal de empobrecimento da arte? “A arte é uma mentira. O papel do artista é convencer os outros da veracidade de suas mentiras”, dizia Paul Klee. A “mentira”, a “imprecisão”, o “erro” e o “defeito” não seriam o fundamento da concepção artística?

Cristina Pescuma: Não acho que haja uma regra. Para alguns fotógrafos, a técnica é importante para construir sua linguagem, quanto mais "perfeita", quanto mais nitidez e resolução tenha a imagem, quanto mais recursos de manipulação, mais impressionante fica o resultado. Já outros, jogam com a "imprecisão", com o "erro". Um conceito fundamental é o de "fotografia expandida", que explora a transitividade entre os meios, problematizando as fronteiras, os limites, introduzindo uma instabilidade na imagem. E fazendo uma revisão da história da fotografia, pode-se perceber que desde o início houve uma busca tanto no sentido de se explorar a legibilidade, a clareza, a objetividade próprias ao meio fotográfico por excelência, o que não deixa de ser um falseamento, quanto também foram explorados os tons sombrios ou solarizados, borramentos, sobreposições, anamorfoses, apagamentos, fragmentações  para produzir uma imagem dúbia, um falseamento que desconstroi a sensação de obviedade da imagem fotográfica. De uma forma ou de outra, a arte é esse jogo que transforma a "mentira" em real e que ao mesmo tempo desvela a "verdade" do que até então era inquestionavelmente o real.

 

Paisagem com casas - James Casebere


Interzona: Ao mesmo tempo o digital parece ser capaz de levar a imagem para além da fotografia; no mundo digital, não há limites para o delírio imagético. O trabalho de manipulação das imagens pode vir a se sobrepor à tarefa de concepção/produção fotográfica. Certa pós-produção masturbatória seria inevitável, portanto, para se chegar a novos tipos de imagem, a novas texturas. Nesse mundo, há ainda lugar para o negativo?

Cristina Pescuma: Mas a fotografia sempre teve um trabalho de pós-produção, vide os clássicos; por mais que a fotografia moderna tenha buscado uma não interferência, um purismo contra o excesso de manipulação da chamada fotografia pictórica, havia toda uma preocupação preciosista na edição, revelação e cópia. Atualmente, talvez já seja o caso em que as questões da fotografia – e há quem diga que não é mais fotografia – tenham que ser transferidas para a pós-produção. Pode ser que agora convenha a solução a que chegou o protagonista de Ítalo Calvino no conto "Aventuras de um fotógrafo": ele se põe a refotografar a fotos feitas por outros. Aliás, a arte contemporânea elegeu como prática no processo criativo a "apropriação" de trabalhos produzidos por outros ou pelo próprio artista em outro momento, retrabalhando-os, colocando-os em outras conexões. Portanto, pode-se dizer que os artistas efetuaram um deslocamento da produção para a pós-produção já há algumas décadas.  Quanto ao negativo, se até hoje alguns fotógrafos buscam recursos utilizados no início da fotografia, por que não usar o negativo, quando este for necessário ao processo criativo do artista?

Interzona: Muitos fotógrafos manifestam certo temor quanto à banalização da fotografia. A princípio, devido à facilidade de acesso aos equipamentos fotográficos e aos programas de edição, qualquer um pode produzir imagens de certa qualidade técnica e se considerar fotógrafo. Essa banalização é realmente um problema? Ou é uma ameaça apenas aos fotógrafos profissionais, que podem perder seus empregos?

Cristina Pescuma: Bom, que eu saiba já há alguns anos os fotógrafos profissionais têm perdido espaço. Num texto muito interessante, Michel Foucault se refere ao final do século XIX como tendo havido o que ele chamou de o "vôo" das imagens, uma febre de produção, todos se puseram a manipular imagens em variados suportes. A certa altura ele se pergunta: jogos de salão? Mau gosto? Sim e não, ele responde. Agora deve ser o mesmo caso. A banalização é e não é um problema, quanto mais pessoas têm acesso aos meios de produção de imagem (de tudo, na verdade), há mais possibilidade de se produzir uma multiplicidade na arte. Enquanto que o banal talvez esteja condenado a desaparecer no instante seguinte, por sua própria natureza. Afinal, nunca se sabe de onde virá uma inovação.

 

 

Cristina Pescuma vive e trabalha em São Paulo; é professora e pesquisadora de história da arte e arte contemporânea.

http://devirfotografia.blogspot.com.br/

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O fotojornalista trabalha com informação, já o artista não está preocupado em informar nada, ele quer, com efeito, criar algo ou trazer algo à tona, tornar visível alguma coisa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cada vez mais a fotografia é construída, não se acredita na possibilidade de – e talvez nem mesmo se deseje – captar algo que esteja "pronto" ou acontecendo naquele momento. Ainda que seja isso também.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Acho que a grande questão atualmente é produzir uma imagem que tenha força, que seja capaz de dar uma direção à pesquisa do artista, que possa se diferenciar em meio a essa massa de imagens que surge a cada minuto no mundo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

De uma forma ou de outra, a arte é esse jogo que transforma a "mentira" em real e que ao mesmo tempo desvela a "verdade" do que até então era inquestionavelmente o real.